O homicídio






Quando criança, lá no interior do seringal, bem no meio da floresta, cometi um crime capital. Não havia planejado, mas sentia que carregava um desejo para consecução da ação delituosa. Afinal, nas redondezas, todos os meus amigos carregavam em suas poderosas armas, as marcas de suas virtudes bélicas.

Era estranho, havia marcas em V, quanto mais V´s, mais sinônimo de glória, e, em minha arma, nenhum sinal de bravura bélica. Apesar de não estarmos vivendo nenhuma guerra aparente, criávamos o cenário de guerra, com vítimas que não tinham condições alguma de se defender, se não, esconder-se na ampla floresta tropical.

Certo dia, porém, repentinamente, estou eu no aceiro da mata, quando vejo ao longe a presa desprevenida ao sol. Rapidamente saquei a arma e fui ao encontro, pelo meio do bambuzal, e desferi o tiro fatal. Um tanto nervoso, aproximei-me para conferir a execução. Tiro certeiro, bem no coração, pronto, havia consumado o crime, embora ninguém tivesse visto.

Pôde finalmente bradar aos quatro cantos, agora sou um de vós, caros amigos, minha arma, também, tem a marca da “honradez” bélica. Finalmente, olhavam-me como um guerreiro.

Apesar disso, passado dias da consumação do ato, a cena do crime não sair da minha cabeça, pior, carregava um sentimento de covardia e me perguntava como podia ter tirado a vida de um ser tão inofensivo, sem lhe oferecer, pelo menos, o direito à defesa?

Fui ao juiz e confessei o crime, mas o juiz sequer me repreendeu, disse apenas: “é coisa de homem, parabéns!”. Aquilo tumultuou ainda mais meus sentimentos de culpa. Procurei a Sábia da Floresta, e ela me disse: “o que tu fizeste foi errado, a vida é um bem sagrado, dado pelos deuses, tu não deverias ter cometido ato tão horrível. Mas fica o aprendizado, respeite a vida em todas as dimensões e formas, pois todo ser faz parte da completude”.

Daquele ato em diante, aprendi que jamais devemos seguir a maré ou ser apenas um maria-vai-com-as-outras, só para termos o reconhecimento do grupo, pois podemos cometer os piores atos em nome de uma aceitação que não faz o menor sentido existencial.

A propósito, a vítima era um Sanhaço- Azul.

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