Política: a territorialização do lugar entre os Estabelecidos versus os Outsiders


     





      Aquele que primeiro cercou uma área e determinou que era sua, e teve dos outros a aceitação disso, fundou a propriedade privada. (ROUSSEAU)





A história das relações políticas no Mato Grosso contemporâneo estão permeadas pelo dilema rousseauniano acima citado, pois a terra não só gera a riqueza material, mas é o alicerce do si constituir enquanto sujeito que a ela pertencente. Contudo, podemos ir além da premissa de Rousseau, ampliando-a não só para o primeiro, mas, também, para o segundo e terceiro que, remarcando uma determinada área e dispondo de “forças” para que outros aceitassem seu domínio, reinventou a territorialização. Essa tem sido, por conseguinte, a dinâmica dos processos migratórios de um modo geral, envoltos à tríade Território, Territorialidade e Territorialiazação.  


Longe de nós pretendermos abordar tais conceitos em suas formas mais profundas, haja vista a complexidade dos mesmos. Neste sentido, ocupar-nos-emos de apenas um deles, ou seja, da Re -Territorialização, posto que é o que mais se afina ao propósito deste ensaio, cujo objetivo é compreender a relação de poder no contexto da territorialização do Mato Grosso, a partir da ideia do lugar como constitutivo da Política, mas, também, como objeto fronteiriço desta.


Sabidamente, Aristóteles referia-se à Política como a mais bela das ciências, posto que, de alguma forma, a Política ocupava uma espécie de Telos na vida social, isto é, tudo que rege a vida, em tese, perpassa pelas determinações da Política ou desembocaria nela, assim como todo rio terminaria no mar. 


O ponto de partida da teoria de Aristóteles sobre a Política, também, como hoje, estava vinculada ao conceito de Território, uma vez que o lugar da Política era Pólis, ou seja, as cidade-estados gregas, notadamente, Atenas, onde havia uma vivacidade extrema do debate político na Ágora (Praça Pública) ateniense. Ali os homens livres exerciam de forma direta a luta pelo poder político, através dos melhores argumentos sobre o destino da Pólis, ainda que, no caso daqueles que não podiam voltar por não ser livres, tinham direito ao voz, ou seja, detinham o direito a fala. Esta alusão à concepção aristotélica que ora fazemos não se dá por acaso, mas porque o marco do debate Político como proveniente da dinâmica território-territorialidade e territorialização, salvaguardo o percurso histórico, tem semelhança com a discussão que nos ocupamos neste breve ensaio.


Dominar o discurso sobre o território e, portanto, as marcas da territorialidade hegemônica em determinado espaço é fundamental para assegurar a dominação política do espaço (Territorialização). Assim sendo, no Mato Grosso contemporâneo, a dinâmica pela luta territorial é um debate fronteiriço entre o atraso e moderno; o primeiro, aquele que atribui às populações autóctones o baixo desenvolvimento, o atraso, o primitivismo, a selvageria e assim por diante; o segundo, aquele do migrante que, mesmo diante das “intempéries”, conseguiu vencer os obstáculos climáticos, geográficos, econômicos e culturais, modernizando/desenvolvimento os espaços antes concebidos como “vazios” demográficos e sinônimo de atraso.


Dessa trama, podemos afirmar que, até meados da década 1990, havia uma fronteira política entre o Mato Grosso antigo (regiões tradicionais como Cuiabá, Cáceres, Barra do Bugres) e moderno (regiões de migração recentes como, por exemplo, Sinop, Lucas do Rio Verde, Sapezal, Campo Verde etc.) em que as disputas pelos espaços tradicionais de poder, especialmente no âmbito do Legislativo e Executivo, davam-se no embate entre os daqui e os de fora, notadamente arredor da cuaibania (conceito muito utilizado no âmbito da Ciência Política regional para compreender o comportamento políticos dos moradores da Grande Cuiabá – Mato Grosso), posto que, de fato, até meados de 2000, parte significativa da representação legislativa tinha origem nas regiões tradicionais do estado, notadamente, na grande Cuiabá. 


Com advento econômico, em alguma medida pela adoção de atividades agrícolas, pautadas nas monoculturas de grãos, mesmo os espaços tradicionais vão, sendo gradativa incorporados a esta nova dinâmica que envolve diretamente não só a construção de novas territorialidades, mas uma nova re-territorialização que se dá nas disputas pelos espaços de poder no âmbito da arena política mato-grossense sob a hegemonia do discurso da modernização e do progresso, sua base de “legitimação’, sob a órbita do vencedor, ou como diria Norbert Elias: dos estabelecidos, isto é, daqueles que, aqui chegando, apossaram-se do território resignificando-os como seus em detrimento do Outro (o indígena, o caboclo, o seringueiro, do poaieiro, dos sem-terra, dos bugres) e, mesmo aqueles que viriam aportar seus sonhos neste mesmo espaço mais recentemente, passariam a ser inevitavelmente outsiders (estrangeiros, alienígenas), principalmente no caso de alguma ameaça à re-territorialização hegemônica, ainda que estes outsiders sejam bastante expressivos neste mesmo território, mas minoritários na representação política institucional do mesmo. 


Termos como pioneirismo, tradição, moderno, desenvolvimento, trabalho, riqueza, agronegócio têm sido utilizados sob o manto daquilo que anunciamos no início deste ensaio como re-territorialização do lugar, de uma nova demarcação do território sob o prisma da “Política”. De outro lado, o Outro/Altero tem sido alijado do processo Político, como se o fosse o estrangeiro, um escravo, um homem não livre como na tradição grega de democracia de que falara Aristóteles. A estes só lhes restam a máxima rousseauniana: “Os homens pensam ser livres, enganam-se, não o são, salvo nas eleições, passadas estas, estes voltam a ser escravo”. 


É interessante notar, como as re-territorializações são, por um lado, calcadas na violência física e simbólica (Dominação) quanto na construção de uma hegemonia que captura os grupos sulbaternizados destes espaços, na medida em que há, sem sombra de dúvida, a “aceitação” subjetiva e objetiva do mundo dos estabelecidos, em alguma medida como seus, também.  Isso é refletido na adesão a estigmatização do Outro (do alienígena) que, no fundo, é reflexo de si mesmo.


Os elementos anunciados acima são importantes porque, quando os transpomos para o universo da Política, o território ou domínio deste (Territorialização) é apreendido e difundido pelos grupos dominantes como privilégios seus no campo da representação institucional do lugar, o que pode ser facilmente observado quando analisamos a representação no âmbito do legislativo estadual, em que prevalece o domínio político dos grandes proprietários, que, além dos domínio dos territórios, estendem sua dominação sobre o universo da Política  sob um prisma, em certo sentido, hegemônico.


Dito tudo isso, é preciso considerar que, ainda assim, o território é um espaço que se constitui e, também, revela possibilidades de contra-hegemonia, como bem advertira Santos: “o território produz espaços de lutas contra o poder dominante, pois quem não se dispõe a ser assimilado, constrói arranjos societárias, produtivos e espirituais e, assim poder diante, como têm feito os movimentos sociais, as populações indígenas, os grupos marginais que preferem sua permanência enquanto outsiders


Nesse sentido, compreender o Mato Grosso nos dias atuais é observar a dinâmica da re-territorialização não mais apenas sob o prisma do território, mas, também, na re-territorialização do universo da Política e dos elementos hegemônicos predominantes nesta fase histórica, em que a construção do (mono)discurso do Estabelecido e seu universo tem sido a tônica da Ágora política mato-grossense.






Texto produzido para o Evento Cerrado – 2016, promovido pelo Doutorado em Literatura – PPGEL- Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).

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