Entre a Bola e a Biblioteca


ENTRE A BOLA E A BIBLIOTECA

Raimundo França[1]


            Livros e bola para os mais afoitos nada têm a ver um com outro. Mas para esse intrépido redator, eles têm em comum a magia. Ambos produzem sentidos inimagináveis na cabeça daqueles que os amam. Aconteceu comigo essa dualidade e, concomitantente, o fascínio por esses dois instrumentos mágicos. Quando criança, ainda, no Seringal, deparei-me com a pelota feita de latex que meus primos produziam para o entretenimento nos finais de tarde, depois do longo dia de labuta. Confesso-vos que na altura dos meus cinco anos passava os dias esperando ansiosamente pelos finais de tarde e assim foi por longos períodos de minha vida.
            Os anos foram passando e quando cheguei à cidade e comecei a freqüentar a escola a – Profª Vera Lúcia Santos – perguntou-me: o que você gostaria de ser quando crescer? Prontamente respondi – jogador de futebol. Nisto acreditei por muitos anos, buscando a realização dessa magia linda que seria, ser jogador de futebol, preferencialmente, jogando pelo Tricolor do Morumbi. Passava dias ensaiando jogadas nas beiras dos campos, ou sendo gandula dos adultos, ou esperando alguém cansar para que eu pudesse entrar e realizar minha fantasia. O Rito era sagrado, todas as tardes e noites, lá estava eu com outros amigos atrás de uma pelota para que saciássemos nossa ânsia pelo futebol. Geralmente, isso ocorria na Quadra do Astral, na Quadra da Municipal, Campo da Raspa - atrás da Serraria do João Telles, hoje Disri (acho).
            Era uma criança muito pobre, mas feliz, muito feliz – era um jogador. Fui campeão em todas as modalidades infanto-juvenis e era da seleção juvenil de Tarauacá – não posso de dizer que era um craque, mas era um bom jogador – sem falsa modéstia – pelos menos foi isso que me dissera Antônio Victor (O pelezinho), quando por acaso encontrei-o em Rio Branco e ele me dissera: rapaz, achei que tu estivesses jogando em algum clube de Futebol aí para fora, porque tu era muito bom de bola. Confesso que fiquei todo besta.
            Apesar dessa magia toda que a bola produzia em meu imaginário – “no meio do caminho – para usar um trecho da poesia de Carlos Drummond de Andrade – apareceu-me uma pedra”, ou melhor, uma Biblioteca, assim mesmo em maiúscula – templo sagrado. A Biblioteca não era esteticamente bela, nem muito grande, mas aflorava minha imaginação, queria perscrutar o que haveria em todos aqueles livros enfileirados. Pôs-me a lê-los e fiquei complemente inebriado com estórias/histórias. Mesmo quando não tinha aula à tarde - depois de vender os salgados ou quibes – visitava a Biblioteca e abria a aquele manancial de possibilidades. Cada vez mais, meus finais de tarde e noite perdiam espaço para os livros, a bola ficava mais distante e meu mundo pueril ia ficando para trás. Em vez do campo de futebol ia para a Biblioteca e trilhava novos caminhos, novas possibilidades, novos amigos, novos argonautas. Entre uma leitura e outra trocava umas idéias com Jair, que me ensinava algumas coisas sobre as mulheres da Terra do Abacaxi.
            Meus primeiros movimentos nas bibliotecas iam a direção dos livros de história e geografia, adorava conhecer os detalhes de momentos importantes do enredo histórico brasileiro, bem como a divisão territorial dos espaços brasileiros. Despertava-me também interesse os livros sobre o Socialismo e, claro, sobre Marx. Mas estes ficavam escondidos e/ ou mesmo inalcançáveis na Biblioteca do Instituto São José – afinal – a linhagem Alemã do Colégio tinha pavor ao comunismo. Numa brecha e outra, eu conseguia com o Jair ou a Beita um livro sobre Marx. Ali também conheci os homens que faziam da palavra sua profissão e paixão, e as usavam como o bom jogador faz com a bola quando consegue um drible inusitado – fazia assim em meu intelecto as poesias e poemas de Carlos Drummond, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade. Aliás, o primeiro livro sério que li, depois do Manifesto do Partido Comunista, foi: Amar Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade que me deixou extasiado. Depois mergulhei insanamente em todos os outros que tive acesso, mas isso é para ser contado num outro momento.
            Veja caro leitor como no meio do caminho de um propenso jogador de futebol foi-lhe aplicado um drible pelo encanto da Sereia de Ulisses e o levou para as outras paragens da vida que não o futebol, mas provocando encanto tamanho quanto às peladas de finais de tarde da Tarauacá de final da década de 1980 e meados da década de 1990, quando este que vos escreve foi descobrir outras bibliotecas e outros mundos pelo Brasil afora.
             



[1] Cientista Político e Sociólogo pela UFAC; Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN); Professor Assistente da Universidade do Estado do Mato Grosso(UNEMAT).

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